quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Defender direitos e reafirmar identidades - Entrevista com Luanna Marley

 Campanha ANA: Quem é a Luana, Quais suas lutas, questões pessoais e profissionais que a constituem? Compartilhar conosco o que desejar. 

Luanna Marley:  Lutas, questões pessoais e profissionais é um tripé que me move cotidianamente. Desde cedo percebia e me tocavam as questões de opressões que vivenciei desde a infância. As situações “camufladas” de racismo na minha infância, como por exemplo eu internalizar que meu cabelo era ruim ao passo que “mangava” das minhas colegas negras até questões relacionadas a minha sexualidade, onde eu me sentia errada e pecadora por querer brincar com “brinquedos de meninos”, ou até mesmo minhas “apaixonites” platônicas pelas minha coleguinhas. Estas duas dimensões que ora me causavam incompreensões, ora indignação marcam a minha trajetória em todas as fases da minha vida. Na adolescência quando me vi como lésbica e assumi isso para mim, especialmente, foi uma questões estruturante que compôs uma batalha interna comigo e os meus desejos, e com a minha família, onde fui compreendendo que na realidade a questão não era EU mas a sociedade que historicamente é cruel, preconceituosa e reforça a dor e o sofrimento daqueles e daquelas que não estão de acordo com os tais “padrões sociais”, ou seja, aqueles/as que não são brancos, heterossexuais, cristãos...e por aí vai, vivenciam situações cotidianas (veladas e explicitas) de violências e opressões. Comigo não foi diferente. Entretanto, existiram dois espaços fundamentais que me acolheram e me fortaleceram: o movimentos LGBT e os movimentos feministas. A articulação entre militância política, academia e experiência profissional sempre compuseram, simultaneamente, a minha formação e atuação nos diversos espaços. Ao passo que havia ingressado na faculdade de Direito, à mesma época me descobri militante do movimento feminista e também no movimento de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT), o que contribuiu para traçar um olhar e reflexões críticas sobre o Direito, bem como acerca do sistema de justiça brasileiro. Esta relação colaborou para o desenvolvimento de estudos e pesquisas sobre Direitos Humanos, com ênfase em Gênero, Feminismo, direitos LGBT, movimentos sociais e políticas públicas. Enquanto estava na Universidade pude aliar esta dimensão com a experiência profissional, ao iniciar um trabalho junto à Coordenadoria de Diversidade Sexual e, posteriormente, assumindo a coordenação de Política de Defesa de Direitos Humanos, ambas da Prefeitura de Fortaleza, abrindo assim caminhos para mais um tema que passou a compor minhas reflexões: as políticas públicas. A experiência profissional alinhada à militância contribuíram para que fossem despertados em mim o interesse em compor alguns espaços ligados à Universidade, mas também outros voltados para repensar a academia, sua relação com a sociedade e os movimentos sociais, como o Observatório de Políticas Públicas da Universidade Federal do Ceará e o Instituto de Pesquisa Direito e Movimentos Sociais (IPDMS). Pensando a Universidade voltada para a sociedade, cooperei, enquanto Professora-Pesquisadora (2013 -2015) na implementação dos cursos "Educação em Direitos Humanos" e "Gênero e Diversidade na Escola" do Instituo UFC Virtual, Projeto de Extensão da Universidade Federal de Fortaleza em parceria com o Ministério da Educação, que teve como objetivo realizar o aperfeiçoamento acerca destes temas junto aos movimentos sociais e professores da rede pública de ensino. A formação acadêmica, juntamente com a experiência profissional também foram determinantes na minha atuação nos direitos humanos, no pensar criticamente este tema e descobrindo outros paradigmas, paradigmas estes que partem do diversos saberes, em especial o saber popular, e consequentemente, pensando o Direito, a partir do direito achado na rua. Em 2012, torno-me integrante Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares –RENAP. Em 2014, como advogada popular, compus a equipe da Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar da Assembleia Legislativa. O pensar – produzir – atuar na área dos direitos humanos na perspectiva da assessoria jurídica popular, enquanto teoria e prática emancipadora, envolve e completa (mas não se encerra), onde recentemente passei a viver em Brasília para focar também na academia ao ingressar no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania na Universidade de Brasília. A dimensão da atuação política-acadêmica e profissional, se configura como uma parte importante do que eu faço, uma vez que é fundamental trazermos aportes teóricos conectados com os ativismos negro, feminista e LGBT, não só contribuído para uma profunda reflexão sobre a sociedade, mas também para as lutas sociais e populares. Há uma potência nas Universidades públicas enquanto produtora de conhecimento, e a utilização destes conhecimentos como instrumentos de enfrentamento contra as violações de direitos humanos, por isso, também, neste atual cenário, as universidade públicas tem sido alvo de ataques pelo governo golpista.

Campanha ANA: Você faz parte da RENAP, o que faz essa rede e como as pessoas e organizações podem acionar?


Luanna Marley: A Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares – RENAP, é um rede que articula advogadas e advogados de direitos humanos que atuam para e com os movimentos sociais, grupos e comunidades que vivenciam as violações sistemáticas de direitos humanos. Nossa atuação se baseia no que chamamos de Assessoria Jurídica Popular, que consiste no trabalho desenvolvido por advogadas/os populares, estudantes, educadores/as, militantes dos direitos humanos em geral, entre outros/as. Assim, temos o objetivo de viabilizar um diálogo sobre os principais problemas enfrentados pela população para a realização de direitos fundamentais para uma vida com dignidade
, seja por meio dos mecanismos oficiais, institucionais, jurídicos, extrajurídicos, políticos e da conscientização. É uma prática jurídica insurgente desenvolvida principalmente no Brasil, nas décadas de 1960 até hoje. A RENAP já existe há 22 anos, iniciando na atuação por direito à terra e território, no seio das lutas por reforma agrária e hoje em dia tem ampliado a sua atuação com temas estruturantes como o enfrentamento ao racismo, ao machismo, à LGBTfobia e ao capitalismo. A assessoria jurídica popular pode propiciar uma nova cultura jurídico-social, na qual prevaleça o respeito à diversidade, às identidades, aos contingenciamentos, às necessidades, às limitações e ao desejo por mudança na sociedade. Estamos em vários estados brasileiros, temos uma página oficial https://www.renap.org.br, onde podem entrar contato conosco. No Estado do Ceará, por exemplo, as pessoas podem entrar em contato, seja através do facebook, seja através do e-mail: renapceara@gmail.com

Campanha ANA: O Brasil é signatário da declaração dos Direitos Humanos, nesse sentido o poder judiciário brasileiro considera esses direitos para as causas que juga, ou ainda é preciso lembrar juízes e promotores do que o brasil é signatário?


Luanna Marley: Infelizmente, a todo tempo, precisamos lembrar ao sistema de justiça sobre a declaração dos Direitos Humanos e inclusive sobre a própria Constituição. Enfrentamos ainda, inúmeras decisões, e atuações do Ministério Público, que desconsideram a dignidade humana, os direitos fundamentais, mas não só isso, se utilizam das normas para uma aplicação da lei de acordo com as suas conveniências, interesses e olhares moralistas, conservadores, LGBTfóbicos, machistas e racistas. O que é de extrema gravidade! Não à toa que inúmeras famílias- comunidades, juntamente com crianças, idosos e mulheres grávidas- são removidas e despejadas de suas casas, vivenciando a violência do Estado. Não é à toa que o Brasil está entre os três países que mais encarceram no mundo, onde a maioria é composta por pessoas negras e pobres. As mulheres são severamente e duplamente punidas pela sistema de justiça, quando cometem alguma infração penal ou crime. E quando são vítimas, por exemplo em casos de estupros, também são colocadas como culpadas por terem vivenciado este crime contra a sua dignidade sexual. Posso citar como exemplo, atualmente, pareceres do Ministério Público que são extremamente transfóbicos e que pedem que o juízes neguem o direito de travestis e transexuais terem os nomes pelos quais desejam ser chamadas e de acordo com o gênero que elas e eles se identificam. Ou seja, temos uma coleção de casos em que o próprio sistema de justiça não só não reconhecem os direitos humanos, mas também promovem violações.

Campanha ANA: Você enquanto advogada considera a defesa dos direitos humanos ainda dificultosa no Brasil? E se sim, por que dessa dificuldade?

Luanna Marley: Este ainda é um grande desafio para a nossa atuação, sobretudo, nos últimos dois anos, onde está escancarada por parte destes que estão no poder as tentativas de revogação de direitos
historicamente conquistados pela população. Assim, houve um profundo agravamento das violações
de direitos humanos, promovidas tantos pelas instituições públicas (desde da violência institucional por parte das polícias, situações de torturas até as decisões judiciais) como pela a sociedade que tem atuado não somente nas redes sociais, mas o ódio e as discriminações tomaram também proporções de agressões físicas e extermínio de mulheres, travestis, jovens negros, violência sexual contra crianças e adolescentes, linchamentos, dentre outros. Esta dimensão do ódio é dia a dia alimentada por parlamentares, pela mídia em um jogo onde a “ciência”, “mercado” e a “fé” andam de mãos dadas como força motrizes que alimentam e legitimam as violências. O que é bastante preocupante! Existe um projeto político e econômico de poder que visa a manutenção das explorações e dominações dos corpos e da terra!

Campanha ANA: Por que tantas defensoras e defensores que lutam junto com os trabalhadores, o povo pobre, preto das periferias, com a mulheres e LGBTS, são alvos da repressão e assassinatos?

Luanna Marley: O conhecimento e a emancipação tem na expressão das consciências e nas vozes que denunciam os instrumentos de luta contra aqueles que detém o poder econômico e político à custa do massacre da população negra, pobre, LGBT, das mulheres, jovens, crianças, adolescentes. Por isso que, como temos os argumentos de justiça e as resistências, e SIM, denunciamos, com o objetivo de transformação social, a forma medíocre e violenta para manutenção do poder deles – que querem manter o machismo, o racismo, a LGBTfobia, a propriedade privada e o lucro – é a perseguição, a criminalização dos movimentos sociais e populares, até o assassinato de defensoras e defensores de direitos humanos, afim de calar suas vozes que denunciam...suas lutas. É assim que agem os ruralistas, os senhores do agronegócio, parte do aparato policial, os especuladores imobiliários. Estes anos de 2016 e 2017 bateram recordes de assassinatos de defensores e defensoras de direitos humanos. Assassinatos, torturas e perseguições, como os que tem ocorrido com indígenas, quilombolas, feministas, ativistas pelos direitos de crianças e adolescentes, ativistas LGBT, bem como pesquisadores e pesquisadoras de Universidade Públicas. Aqueles e aquelas defensores e defensoras que perderam suas vidas estão mais presentes do que nunca nas nossas lutas, seja onde for!

Campanha ANA: Como podemos avançar nas lutas sociais sem necessariamente entrar no terreno do judicialização?


Luanna Marley: Na realidade, tenho dito que temos que avançar por caminhos para além das institucionalidades, uma vez que vivemos momentos e contornos políticos que se assemelham a ditadura civil-militar de 1964, não só pelos discursos, mas pelas legislações autoritárias que mascaradas pelas ideologias fascistas, promovem formas políticas e materiais de manutenção do poder que tem como consequência mortes físicas, psicológicas e simbólicas daqueles/as que para eles são corpos inferiores (que não importam). Falo de um projeto neoliberal e conservador! O executivo, legislativo e com o aval do judiciário contribuem e promovem estes contornos. Interessa a eles - falo
“eles” porque sua maioria é de homens a serviço de e para homens brancos, ricos e ‘cristãos’- a manutenção deste sistema político que coloniza, que é racista e machista, que ataca a Democracia, os direitos sociais, como os trabalhistas e, agora, a previdência. Ora, não é á toa que são estes que defendem a escravidão, o recolhimento da mulher ao âmbito privado (política da bela, recatada e do lar), não é à toa que eles (sobretudo, os fundamentalistas religiosos) inventam um termo chamado “ideologia de gênero”, como forma de confundir a população para que não se avancem as discussões de gênero e de diversidade sexual. O que isso quer dizer? É que estes fanáticos, através de mitos e mentiras, tem promovido o ódio as mulheres e LGBT, tentando barrar temas importantes como o combate à violência contra as mulheres e a garantia dos direitos sexuais e direitos reprodutivos. Por isso que as RUAS ainda são os nossos espaços, é a nossa arena pública e de luta na busca por justiça e igualdade.

Campanha ANA: Há algo mais que que gostaria de colocar?

Luanna Marley: Vamos à LUTA!



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